EPISÓDIO CATORZE: A Lealdade Rime de Tashi Namgyal

Era o início dos anos 60, e por todo o Himalaia tudo parecia estar desmoronando. Mosteiros haviam sido destruídos. Grandes mestres sido assassinados. Famílias desalojadas. E então Tsewang Paljor deixara seu posto de chagzöd do Khyentse Labrang e é provável que muita gente estivesse pensando que aquele seria o fim do destino e boa fortuna da linhagem Khyentse.

Era preciso que alguém ocupasse a posição deixada por ele. O único qualificado para tal, aparentemente, fora Tashi Namgyal, da família Drumo. A família Drumo era uma família aristocrática do reino de Derge. Quando Tashi Namgyal nasceu, um adivinho predisse que o menino não viveria muito, então a família o ofereceu como atendente para Dzongsar Khyentse Chökyi Lodrö. Oferecer crianças a um grande mestre para o bem-estar da própria criança era uma prática comum no Tibete.

Conforme crescera, Tashi Namgyal não ficara conhecido por sua erudição. A única coisa que jamais estudara de fato fora como tocar o gyaling (uma trombeta tibetana). Ele não apenas tocava muito bem, ele claramente adorava o instrumento e sempre cuidara meticulosamente do seu. Ele também era um excelente instrutor de gyaling; algumas das músicas que ensinava são tocadas até hoje. Afora isso, era a pessoa mais esquecida de que se tem notícia. Ele frequentemente ia ao mercado comprar algo e voltava de mãos vazias. Ou procurava por suas vestes em todo o canto até perceber que já as estava vestindo.

Tashi Namgyal era notoriamente pachorrento e prolixo. Quando viajávamos de trem pela Índia, sempre havia uma certa tensão quando ele desembarcava numa parada pelo caminho para rapidamente tomar uma xícara de chá ou pegar água quente. O trem sempre tocava o apito três vezes antes de deixar a estação. Lembro-me de muitas vezes ter ouvido o terceiro apito e vê-lo correndo atrás do trem já em movimento com seu chá quente, saltando pra dentro do vagão no último instante possível. Felizmente, os trens indianos andavam devagar e nas cabines de terceira classe em que viajávamos não havia portas que o impedissem de fazê-lo.

Sendo um aristocrata, Tashi Namgyal tinha incontáveis primos, sobrinhos e sobrinhas. Ele os adorava e eles também o adoravam. Ele era o próprio exemplo de um “tio querido” para aqueles jovens. Ele também adorava assistir às partidas locais de futebol em Gangtok. Chovesse ou fizesse sol, lá estava ele no estádio com uma tábua de madeira na bolsa; como o estádio era precário, ele precisava da tábua para se sentar. Claro que nunca me permitiam sair do mosteiro e muito menos ir com ele às partidas de futebol.

Olhando em retrospecto para minha infância há várias coisas pelas quais sou grato. Obviamente, tive muito mérito de ter encontrado o caminho de Siddhartha, o Darma e vários mestres indescritíveis. No entanto, agora percebo que também foi por grande mérito que chagdzöd Tsewang Paljor se demitira e Tashi Namgyal tornara-se meu chagdzöd e mais tarde meu atendente.

Normalmente, quando a encarnação de um lama é identificada, os atendentes tendem a ser bastante rígidos e bitolados no que tange à formação dos meninos. É comum que os atendentes e chagzöds pequem pelo excesso de sectarismo e apresentem apenas uma única tradição. No entanto, no meu caso, sempre que se sabia de alguma iniciação ou ensinamento – fosse de Kyabje Dilgo Khyentse Rinpoche, do XVI Karmapa, de S.S. Sakya Trizin ou de vários outros mestres – chagdzöd Tashi Namgyal se certificava de que eu estaria presente a todo o custo. Isso não apenas era algo inusitado, era também bastante difícil para ele providenciar tudo, porque o labrang estava falido.

Ele me mandava pra cima e pra baixo, apesar de sofrer grande resistência de vários tipos de pessoas que o criticavam pelas costas. Os nyingmapas reclamavam que ele me levava aos ensinamentos dos sakyapas e kagyupas. Os sakyapas reclamavam que ele me levava aos kagyupas e nyingmapas. Sua resposta a esses resmungos sempre foi um grande sorriso. Jamais houve qualquer confronto. No entanto, ele era firme quando se tratava de decidir o que fazer. Ele chegou até a declinar a oferta do grande mestre nyingma Chatrul Rinpoche quando este se ofereceu para supervisionar meus estudos. Embora Tashi Namgyal tivesse me encorajado a receber ensinamentos de Chatrul Rinpoche, ele não quisera que eu me devotasse a uma única tradição.

Meu avô Dudjom Rinpoche com Chatrul Rinpoche

Na cabeça de Tashi Namgyal eu deveria ser o mais não sectário possível, já que supostamente eu era a encarnação de Dzongsar Khyentse Chökyi Lödro, o qual, dentre várias outras razões, era reverenciado por sua dedicação sem precedentes a todas as linhagens do budismo tibetano. Tashi Namgyal se comprometera a dar continuidade a essa tradição ao me apresentar a todos esses grandes mestres, seus ensinamentos e suas bênçãos.

Quando fui inscrito na Faculdade Sakya para estudar filosofia budista, a faculdade tinha um currículo abrangente e desse modo a presença nas aulas era indispensável. No entanto, Tashi Namgyal muitas vezes me tirava da sala de aula no meio do semestre para que eu participasse de ensinamentos e iniciações. Havia quem não visse isso com bons olhos. Então, no meu último ano na faculdade, Tashi Namgyal insistiu para que eu deixasse o curso justamente antes do fim do ano e assim perdi o exame final e nunca me formei. Na época fiquei irritado com sua decisão, porque isso significava que eu não teria um diploma. Tashi Namgyal respondera que não existe diploma mais precioso do que o título de Jamyang Khyentse.

Embora na época eu não tenha achado agradável ouvir isso, foi algo que deve ter me marcado, já que anos mais tarde não me incomodei muito por não ter terminado o mestrado na SOAS da Universidade de Londres. Só pode ter sido por influência de Tashi Namgyal.

SOAS, na Universidade de Londres

Com sua lealdade à tradição Rime – embora não fosse ele mesmo um grande erudito – Tashi Namgyal eclipsara os assim chamados acadêmicos que, na realidade, eram bastante limitados e sectários. Foi mérito meu ter tido uma educação guiada por ele. Não há como retribuir apropriadamente sua bondade por tê-lo feito.

Meu pai

Mencionando meu mérito neste contexto, devo também mencionar minha família. Minha família era fortemente nyingmapa. Meu avô, Kyabje Dudjom Rinpoche, e meu pai, Dungse Thinley Norbu Rinpoche, desempenharam papéis de grande influência na tradição nyingmapa. Ambos poderiam facilmente ter pressionado o Khyentse Labrang e exigido que eu não fosse levado a todos os ensinamentos kagyupa e sakyapa; minha família, no entanto, jamais interferiu. Observando hoje como as famílias e labrangs controlam a formação e a educação de algumas das atuais encarnações, sinto grande apreciação pela generosidade e confiança de minha família.

Shamar Rinpoche

Tashi Namgyal, sendo um aristocrata khampa, valorizava a honra familiar. Pode-se interpretar isso como lealdade ou como nepotismo. Sua irmã deu à luz a Shamar Rinpoche. Muitos anos mais tarde, Shamar Rinpoche se envolveria na controvérsia da entronização da décima sétima encarnação do Karmapa. Shamar Rinpoche endossara um Karmapa, enquanto Situ Rinpoche endossara outro. Por ser seu tio, Tashi Namgyal estivera firmemente do lado de Shamar Rinpoche. No entanto, em sua defesa, diga-se que ele jamais, nem por um minuto, tentou me influenciar a concordar com ele. Ao contrário, ele me recordara que, geograficamente, o Mosteiro Dzongsar era próximo do Mosteiro Palpung de Derge e do mesmo modo as encarnações anteriores dos Situ e dos Khyentse tinham sido próximas – e isso era algo a se considerar.

Tai Situ Rinpoche com um dos XVII Karmapas

Se tenho qualquer apreciação e veneração pelas diferentes escolas – não apenas pelas diferentes escolas do budismo tibetano, mas também por outras tradições budistas como o zen e o theravada –, devo dizer que Tashi Namgyal desempenhou um papel nisso. Tashi Namgyal faleceu em Bir, no dia 8 de agosto de 2007. Será lembrado por mim como um dos mais amáveis e afáveis seres humanos que já conheci.

Yangchen Shenyantsang com Tashi Namgyal em Sikkim

Tashi Namgyal em Bir, Himachal Pradesh.

Habilidades

Postado em

outubro 30, 2019

4 Comentários

  1. Ieda de Abreu

    Agradecida por ler, tomar conhecimento dessas histórias desde o início.

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  2. Celso Vieira Lemos

    Agradeço por esses ecinamentos.

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  3. Luciano Oliveira de Amorim

    agradeço pela tradução e as memórias do Rinpoche, inclusive citando as questões políticas e econômicas e de poder existente no budismo…

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  4. Silvio Vartan Kouyomdjian

    🙏🙏🙏

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